sábado, 22 de setembro de 2012

GUINEA PIG: A SERIE.

Nota Pessoal: Para entender melhor a resenha do filme 'The Devil´s Experiment' ( ver aqui ) da série Guinea Pig, resolvi colocar aqui uma resenha explicando por alto o que foi (ou continua sendo) essa série.




A série Guinea Pig (cobaia, em inglês) ostenta, provavelmente, o primeiro posto entre os filmes de maior notoriedade no universo underground do horror extremo (ao todo são 06 filmes, produzidos em 1985, com duração media de 42 minutos). Durante anos, cópias raras e vagabundas circularam pelo mercado – sempre com péssima imagem – e ajudaram a transformar a série, registrada no formato vídeo e não película, em alvo de obsessão por parte dos aficcionados em cinema extremo e de vanguarda. Num certo sentido, a série pode ser considerada quase pornográfica. O enredo normalmente é mínimo e funciona, a um primeiro exame, apenas como pálida justificativa para uma profusão de cenas radicalíssimas transbordantes de violência e sadismo. O objetivo confesso é apanhar o espectador pelo estômago, bombardeando-o incessantemente com cenas de torturas, desmembramentos e eviscerações. O resultado é uma tremenda overdose sensorial que somente encontra paralelo nos filmes mais radicais de sexo explícito.

As histórias e as lendas que assombram a realização dos filmes são tão interessantes quanto eles próprios. No primeiro filme da série – The Devil’s Experiment – sequer se veiculam os créditos, com o escopo de alimentar a fantasia de que se trata de um snuff. Alguns incautos levaram a brincadeira a sério. Na Suécia, reza a lenda, o filme foi investigado pelas autoridades, que somente arquivaram o caso após o parecer de um legista atestando de que a coisa toda era montagem. Na Inglaterra, um colecionador de filmes de horror foi preso e processado, ao argumento – absurdo e fascista! – de que comercializava filmes imorais e criminosos. Nos Estados Unidos, o famoso ator de cinema Charlie Sheen, ao ver uma cópia esmaecida do filme, julgou tratar-se de cenas reais e levou o caso às autoridades. Após extensa investigação, conclui-se que tudo não passava de uma farsa. O episódio mais notório, entretanto, deu-se no próprio Japão. Um serial killer verdadeiro teria torturado e matado crianças sob a influência, segundo a polícia, de um filme da série. O caso ganhou repercussão nacional e os envolvidos com a produção dos filmes foram acusados de apologia à violência. A história acabou não dando em nada, ante a óbvia constatação, para aqueles que ainda têm bom senso, de que um psicopata não precisa assistir a um filme de horror para decidir matar alguém.

Diante dos desdobramentos, o diretor do filme, Hideshi Hino, viu-se compelido a revelar sua identidade, bem como a dos atores do filme, de sorte a provar que tudo não passava, evidentemente, de cinema. Mas a fama já havia sido ganha e a série tornou-se sinônimo de perversão. Depois da balbúrdia, os realizadores resolverem mudar a proposta e passaram a produzir filmes com altas doses de humor negro e enredos mais elaborados, o que resta evidenciado, respectivamente, no terceiro e quarto filmes da série: He Never Dies e Mermaid in a Manhole.

Mas são os dois primeiros filmes que realmente fizeram a fama maldita dos Guinea Pig. Flower of Flesh & Blood, especialmente, é aquele que melhor encarna o sombrio espírito original da série.
O filme inicia-se com uma subjetiva do assassino a procurar, aleatoriamente, uma vítima no metrô. Feita a escolha, passa a perseguir jovem mulher até que, num parque escuro, ataca-a com um lenço embebido em substância dopante. Em seguida, numa tomada muito bem feita, vemos a pobre mulher despertar, paulatinamente, para o horror que a aguarda. Ao som de lento e perturbador gotejar de água, a jovem dá-se conta, pouco a pouco, de que está amarrada a uma mesa, em algum porão sinistro. O barulho da água é então substituído pelo ruído áspero de uma faca a ser amolada. Já tomada pelo terror, a pobre vítima começa a debater-se freneticamente, enquanto permanece com os olhos vidrados na sorumbática figura de negro que, dando-lhe as costas, afia a lâmina na pedra. Um corte seco de câmera e a figura volta-lhe o rosto. Trata-se de um homem vestido de samurai. A face, inteiramente pintada de branco, confere-lhe o aspecto de um cadáver. Um esgar torce-lhe a boca, crivada de dentes enegrecidos. Enquanto a vítima, amordaçada, emite inúteis gritos surdos, o samurai apanha uma galinha e, exibindo-a à jovem, decepa a cabeça do bicho. Com a face cadavérica respingada de encarnado, o homem derrama o sangue fresco sobre a mulher. O anúncio solene então é feito: esse será, também, o seu destino. Novamente dopada, a jovem perde a consciência, para nunca mais recobrá-la.

Desse ponto em diante, com exceção de poucos trechos em que o samurai declama versos para a câmera, descortina-se longa seqüência, muito bem realizada e incrivelmente realista, de desmembramento e evisceração, que é finalizada com a decapitação, em slow motion (numa cena crudelíssima), da mulher. O filme termina com o samurai a adicionar as partes do corpo da vítima à sua bizarra coleção, em que já abundam pedaços de corpos humanos a simularem flores plantadas na terra. Típica e triste canção japonesa embala esse momento macabro, com a letra a lamentar a queda da alma às negruras inebriantes do inferno.

Para além da violência explícita, é possível colher, num exercício talvez ousado de exegese, ácida crítica a elementos da complexa cultura japonesa. O samurai é a epítome de uma sociedade orgulhosa e militarizada que não sabe lidar com o desejo sexual masculino nem com o papel da mulher na vida pública. Prisioneiro de antigas tradições, o samurai teme a modernidade (o que resta evidenciado pela escolha das vítimas no metrô) e, principalmente, teme a liberdade que a mulher, mais e mais, passa a conquistar na esfera pública. No filme, a relação do homem com o sexo oposto é de objetalização e de idealização patológicas, o que se expressa na tentativa de “transformar” a mulher em algo perfeito e controlável, mediante a sua “reestruturação” ontológica em um novo ser: uma flor, que será plantada e vicejará, assim se espera, expondo toda a sua beleza mais recôndita e visceral. A tentativa, evidentemente, fracassa, e o filme termina com a idílica beleza sendo devorada pelos mais abjetos vermes da putrefação. Negada a possibilidade do escapismo estético, resta ao samurai descer, tristemente, num arakiri metafórico, aos fundos e inescrutáveis abismos do inferno.

Com certeza, Flower of Flesh & Blood (o segundo e mais famoso episodio, cuja a imagem ilustra o começo da resenha) não é um filme para todos. Nem mesmo para os fãs regulares de horror. Mas a experiência vale a pena, se não assusta ao espectador a perspectiva de preencher a alma com o mais absoluto nada.

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